Todo trabalho gera identidade, por mais que você não perceba, há influências do seu trabalho sobre a percepção de quem você acredita que é. Existe um limite muito delicado entre quem sou eu e quem sou eu sobre a influência do meu trabalho, esta diferença tem sido muito discutida atualmente, inclusive há empresas preferindo contratar as cegas, buscando conhecer mais a pessoa do que suas experiências e resultados. No universo de carreira, falamos sobre propósito e sobre trabalhar com o que gosta de fazer e não apenas trabalhar para ganhar dinheiro. Já foi comprovado que um funcionário satisfeito com o que faz, tem maior produtividade e resultados. É uma visão míope trabalhar apenas pelo dinheiro, é uma satisfação temporária, a maioria das pessoas que optam por esse caminho, sentem um vazio ao longo dos anos e começam a se questionar sobre a carreira e o porquê do trabalho que faz.
Quando o profissional não consegue separar seus papéis e se identifica apenas com o trabalho que realiza, ele tende a confundir sua própria identidade com o trabalho. Observe como isso pode acontecer, em alguma ocasião em que o profissional precise se apresentar, ele tende a fazer desta forma:
Recentemente uma cliente entrou em estado de autoquestionamento quando participou de um evento online. As pessoas simplesmente se apresentavam dizendo quem elas eram, assim: Sou Maria, mãe do Paulinho e do Marcos, venho da cidade tal, sou casada há x anos, meu marido faz tal coisa, eu gosto muito de fazer tais coisas, estou trabalhando remotamente há 1 ano e estou em busca de tal coisa neste evento…
Quando ela se apresentou, disse o nome, o cargo e a empresa que trabalhava, sem mais. Logo depois, ficou sem graça, percebendo que não sabia falar sobre quem ela era como as demais participantes fizeram. Não se sentiu preparada para falar da vida pessoal, por ter medo de se mostrar vulnerável como as outras, então falou sobre suas credenciais, que geram autoridade e respeito em qualquer lugar. Como um escudo.
Quando há baixo autoconhecimento e alta insegurança sobre quem a pessoa é, basicamente o sobrenome da pessoa são as credenciais do trabalho que ela exerce e quando ela perde o trabalho, perde também essas referências, não consegue mais saber quem ela é, há uma perda de identidade. É aqui começa o problema na recolocação profissional.
O profissional que se apaixona mais pela história que viveu com a empresa, do que por sua própria trajetória profissional, tem grandes perdas durante o processo de recolocação e também provoca um bom atraso na retomada ao mercado.
O primeiro impacto sem dúvida, acontece durante uma entrevista, no momento de responder à pergunta: Fale me sobre você. O profissional já começa falando do cargo que ocupa ou ocupava, da formação acadêmica, da trajetória profissional. É um equívoco. Este é o momento de falar sobre ele de verdade, sua origem, valores pessoais, interesses, hobbys, família e sim, abrir o caminho para começar a falar sobre a trajetória profissional. Uma informação relevante para este momento é:
“Esta pergunta é o único momento que você tem para falar sobre o que realmente acredita e pensa sobre si. Todo o restante da entrevista será sobre a sua trajetória profissional.”
Então não dá para passar despercebido nesta pergunta, se o profissional não se conhece a ponto de não conseguir falar sobre si mesmo, ele perde a oportunidade de demonstrar o interesse que tem pela organização baseado na compatibilidade de valores e interesses profissionais, de forma muito natural, gerando empatia e identificação com avaliador.
Outro dia, enquanto treinava uma cliente em uma consultoria para entrevista, ela narrou toda trajetória de crescimento e expansão da empresa, mas quando perguntei qual foi a contribuição dela para aquele sucesso, ela não conseguiu responder. Ela estava mais preparada para representar a empresa do que a si mesma. Isso acontece com mais frequência do que você imagina, os profissionais fazem isso sem perceber e muitas vezes não entendem por que foi eliminado.
Muitos candidatos fogem desta pergunta, mas ela sem dúvida é a pergunta mais feita nos processos seletivos em qualquer nível de entrevista com qualquer tipo de avaliador, seja RH ou C-level.
A confusão de identidade começa quando o profissional não sabe exatamente se ele é bom no que faz ou se ele é bom apenas na empresa que o acolheu por muitos anos, proporcionou desenvolvimento, sustento, alcance de sonhos e metas pessoais como, a casa, carro a pós-graduação. A relação trabalho X empresa se mistura. Isso pode ser saudável se o profissional souber dissociar quem ele é da empresa que ele trabalha. Agora, se ele trabalha com o propósito, essa relação realmente fica muito mais clara e perceptível durante uma avaliação.
Apenas por meio do autoconhecimento o profissional volta a ter clareza de quem ele é X o papel que ele representava naquela empresa. Quando eu identifico este sabotador no meu cliente, dentro da mentoria para recolocação, eu incentivo que o profissional entre em contato com os prejuízos, perdão e gratidão promovidos pela empresa que passou mais de 10 anos. É preciso fechar o ciclo e realizar um encontro com a real identidade do profissional para ele conseguir se expor aqui fora. Assim como aconteceu com esta cliente que escreveu em seu depoimento no meu perfil:
“O mais importante na consultoria foi aprender a olhar para minha trajetória profissional e saber contar essa história com confiança e clareza.”
Veja neste link no final de página https://www.linkedin.com/in/suelymilanezcarreira/
Enquanto isso não for feito, o profissional tende ter a auto percepção de que está “traindo” a empresa, mesmo que inconscientemente.
Muitos profissionais que estão trabalhando, já não percebem mais os ganhos na troca da entrega do seu tempo para o trabalho na empresa, versus o dinheiro e as oportunidades que se tem ali. Mesmo assim, eles se mantêm lá, sentindo a mesma culpa ou sensação de traição ao tentar concorrer a vagas no mercado e, possivelmente, diante de uma nova oferta de trabalho, não conseguem pedir demissão da empresa que o acolheu por 14, 16, 18 anos. É como se sentisse incapaz de ser alguém no mercado de trabalho e só ser alguém útil dentro daquela empresa.
E assim, os profissionais vão para os processos seletivos sem preparo e durante a entrevista valorizam mais a empresa, narram as histórias de dificuldades e sucesso da empresa, mais do que a sua própria trajetória profissional. Ele valoriza datas marcantes, como inauguração, primeira venda, números relevantes do negócio e não sabe dizer exatamente como ele contribuiu para os resultados, ele não enxerga a sua participação para o alcance dos resultados, não percebe a importância dele na construção daquele negócio, e sempre relata com muito orgulho e admiração a história da empresa sem ter clareza do seu papel.
O recrutador que ouve fica confuso, sem entender o que ele está fazendo naquele processo seletivo demonstrando tanto amor pelo que faz atualmente. É difícil extrair o porquê ele quer sair da empresa se ela é tão maravilhosa na história dele ou ele não consegue assimilar o desligamento para contar. E o candidato, depois de falar tão bem da história e ouvir as próprias palavras, já não tem mais segurança para explicar por que está buscando algo novo. Se confunde, gagueja, tenta puxar um assunto “social” do tipo: “todo mundo está em crise, a empresa também está…” Mas não tem clareza do seu plano profissional.
Falta clareza para ele organizar a narrativa na seleção e assim não convence o recrutador que o desclassifica, mesmo sendo um excelente candidato, com boa experiência, ele não passa segurança de que irá evoluir na seleção, deixando o recrutador pensar que pode usar a oferta da vaga como barganha para conquistar um aumento salarial internamente. Além de perceber que a relação afetiva com a empresa atual, pode impactar emocionalmente na produtividade e nos resultados, ao entrar na nova vaga.
Há aqueles profissionais que depois de demitidos tentam voltar para a empresa que o desligou, justamente por não conseguirem se perceber em um novo local de trabalho, com outra empresa, outra equipe. Sofrem por não entrarem nos processos seletivos para voltar a trabalhar naquele lugar em que conhece bem a história, sentem uma paixão e ficam chateados com os colegas que estão lá dentro e não o ajudam a voltar. O profissional não encerra o ciclo e assim, não enxerga as outras oportunidades disponíveis no mercado, muitas vezes por que não querem enxergar, estão focados apenas em voltar e continuar a história que ele não encerrou internamente.
É como se rompimento com a empresa não tivesse sido digerido, assimilado, eles tentam voltar para fazer diferente. Como uma segunda chance em um relacionamento. Mas na realidade, não percebem que estão travando seu próprio desenvolvimento profissional e o possível crescimento em outra organização.
Quando um ciclo se encerra, a pior coisa que pode ser feita, é não enxergar que acabou, pois gera muito sofrimento e estagnação. Aqui a acontece a dissociação, que na psicologia entendemos como um mecanismo de defesa da mente para evitar entrar em sofrimento. Por isso é tão importante respeitar o luto da perda do emprego, mas definir o prazo de encerramento para não adoecer e deprimir. É como se o profissional estivesse preso dentro de uma garrafa, navegando em um oceano de possibilidades que ele só consegue ver o que está perto e não se abre para ver o horizonte e nadar nele.
Imagem capsula Imagem de Michelle Raponi por Pixabay
Complexo, mas muito real. São incontáveis os casos que já atendi assim. O profissional só percebe que está apaixonado pela história com a ajuda de alguém que o faz reconhecer o seu valor. Quando reconhecem, percebem o quanto ficaram estagnados sem cuidar da carreira, sem se atualizar, sem se relacionar.
Eu também vivi essa história na minha carreira, eu também não me enxergava fora da empresa que eu trabalhava, não sabia das minhas capacidades. E para você, faz sentido essa percepção para sua carreira, neste momento? Me conta aqui nos comentários?
Suely Milanez
Psicóloga – Mentora em Recolocação e Empregabilidade
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